quinta-feira, fevereiro 18, 2016

Ex-arcebispo da Beira recorda como afastou Portugal e outros países de acordos de Roma

O arcebispo emérito da Beira e figura essencial do Acordo Geral de Paz em Moçambique, Jaime Gonçalves, recorda como Portugal e várias potências estrangeiras tentaram participar na histórica reconciliação de Roma e todos tiveram a mesma resposta: "Vão embora".
Em entrevista à Lusa, o representante do Vaticano e da Igreja Católica de Moçambique conta que, quando finalmente conseguiram sentar as partes beligerantes à mesa de negociações directas em 1992 na capital italiana, os mediadores tiveram uma crise inesperada "e que muitos não sabem", porque o primeiro encontro entre Governo e Renamo (Resistência Nacional Moçambicana) "mexeu um pouco com as políticas [internacionais] ".
Um dos países que deram conta da sua vontade de participar no diálogo foi Portugal, justificando, segundo o prelado, com a sua condição de antiga potência colonizadora e que nada podia acontecer em Moçambique sem o envolvimento de Lisboa.
"Tivemos de mandar o Mario Raffaelli [mediador-chefe de Roma] a Portugal para explicar ao Presidente Mário Soares a situação", lembra o ex-arcebispo da Beira.
No final, prosseguiu, "os portugueses não complicaram muito e acabaram por dizer que estava tudo bem se a Igreja [Católica] já estava dentro do assunto".
O movimento de diplomacias subitamente interessadas no processo da reconciliação moçambicana começou, porém, de acordo com Jaime Gonçalves, com os Estados Unidos.
"O primeiro que ficou mexido foi a América, apesar de [o ex-presidente norte-americano George] Bush ter autorizado" as negociações directas, sob mediação da organização católica Comunidade de Santo Egídio.
"Veio um embaixador [norte-americano] e disse assim: 'Nós, americanos, temos de entrar porque somos americanos e nada no mundo pode acontecer sem nós'", segundo o líder religioso, acrescentando que os mediadores avisaram que isso um problema, logo confirmado pela primeira reacção da Renamo, para quem "os americanos nunca tinha dado uma bala sequer para fazer a guerra".
Após os Estados Unidos, assinalou o antigo mediador do Vaticano, apareceram França e Reino Unido, que tinham tomado conhecimento da iniciativa de Washington e supostamente fizeram saber a sua posição de que "a América não tinha nada a ver com a África, que África era da Europa".
Os mediadores recusaram esta nova investida, "ou as negociações iam virar um parlamento", mas depois surgiram os russos
"Eles também ouviram essa brincadeira: 'Se a América se mexe lá dentro, temos de estar lá dentro'", recorda Jaime Gonçalves, observando que, a dado ponto, os mediadores começaram a impacientar-se e todos levaram a mesma resposta: "Aqui não há América, nem soviéticos, nada. Vão todos embora".
Mas ainda apareceu a África do Sul: "'Queremos entrar nas conversações. Nós os sul-africanos somos uma força na região da África Austral. Nada pode acontecer em Moçambique sem nós'", lembra o arcebispo, para quem "isso da potência africana era conversa", e os diplomatas de Pretória levaram a mesma resposta de todos os anteriores, apesar dos "almoços bonitos e vinho bom italiano" oferecidos aos mediadores em Roma.
Até ao Acordo Geral de Paz, que, a 04 de outubro de 1992, encerrou 16 anos de guerra civil em Moçambique, Jaime Gonçalves revisitou ainda os avanços e recuos negociais que conduziram até Roma, após outras capitais terem sido chumbadas pelas partes, incluindo Lisboa,
Segundo o religioso, quando a Renamo propôs Nairobi, o Governo recusou porque havia gente da Frelimo que tinha desertado da Tanzânia para o Quénia e podia perturbar o processo.
Lisboa foi também rejeitada com um argumento similar, uma vez que acolhia muitos retornados portugueses de Moçambique, "estavam zangados e também podiam influenciar o diálogo".
A Renamo, por sua vez, negou a sugestão do Malawi, alegando falta de segurança e, nesse caso, não saía do mato.
"Na altura, nós dissemos: 'Vamos continuar essa ladainha?"", recorda o mediador católico, indicando que foi o próprio impasse que colocou Roma no mapa da reconciliação e à responsabilidade da Igreja.


Fonte: LUSA – 18.02.2016

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