quinta-feira, novembro 10, 2011

Algumas maçãs são mais importantes que as outras

Por Bayano Valy

O recente falecimento do antigo Chief Economic Officer (CEO) da empresa de tecnologia informática Apple levou-me a pensar não tanto na morte mas na importância das maçãs na História da humanidade – aviso que quero utilizar a morte de Steve Jobs para olhar ao nosso sistema político e tentar perceber até onde o mesmo incentiva o talento em Moçambique.

Pois bem, para muitos, as maçãs servem apenas uma única função: alimento. Mas para outros, são aceleradoras de vários desenvolvimentos. Por exemplo, a maçã metafísica de Adão e Eva é um meio de transferência de responsabilidades do Criador ou Homem. Doravante e apesar de todas as remostrações do ser humano, não há como fugir da sua responsabilidade sartreana. O homem passa assim a ser responsável por ele, pelos outros e pelo mundo. Existe depois um segundo momento em que a maçã gravitosamente cai sobre a cabeça de Isaac Newton e este dá-nos a famosa Lei de Gravitação Universal que explica as orbitas dos planetas, das suas luas, bem como os trajectos dos cometas, entre outros. O importante a reter é que a lei permitiu que subsequentemente a humanidade pudesse explorar o espaço. O terceiro momento é a criação da Apple (Maçã). Se formos a acreditar as elogias fúnebres do malogrado, essa de Steve Jobs e a sua “Maça” trouxeram-nos avanços tecnológicos significativos. Portanto, a ilação que se pode depreender do disposto é de que a maçã desempenha um papel muito preponderante no desenvolvimento da sociedade humana.
Pois bem, como disse quero debruçar-me sobre o nosso sistema político e até onde o mesmo encoraja o talento no país e para tanto ofereço a seguinte humilde hipótese: na actual situação Moçambique tem condições para que ao cair uma das afamadas maças emergiria um Steve Jobs ou que se uma caísse a mesma não apodreceria porque os Steve Jobses moçambicanos não têm como as tocar.
Obviamente que é mais fácil produzir afirmações do que prová-las. Vamos então começar pelo contexto americano, o país que ofereceu Steve Jobs ao mundo. Os Estados Unidos da América são indubitavelmente o modelo mais radical do Capitalismo, personificado no chamado “Sonho Americano” que postula que qualquer indivíduo pode, através do seu esforço individual, trabalho árduo e força intelectual, produzir o seu bem estar e por tabela o bem estar de toda a sociedade. O objecto final do capitalista é investir para fazer lucros.
A função do Estado Federal americano é fundamentalmente propiciar um ambiente onde um indivíduo empreendedor possa investir o seu tempo, dinheiro e conhecimento para atingir o lucro. Apesar da diferença de perspectivas entre os Democratas e Republicanos sobre o tamanho desse Estado, há ressonância no concernente ao que esse mesmo Estado Federal deve fazer para a promoção dum terreno fértil para a reprodução do seu sistema capitalista. Importante a ater aqui é o papel da liberdade individual em perseguir o Sonho Americano.
Nas palavras do cientista político norte-americano Louis Hartz, a sociedade americana é “devota ao ideal lockeano de individualismo racional liberal.”Segundo essa perspectiva, o governo existe apenas para servir os interesses de cidadãos industriosos e racionais. Não é por acaso que segmentos da sociedade americana batem-se por um Estado minimalista.
É bem verdade que existem outros modelos capitalistas com sucesso que não o americano, mas me cingo apenas neste com meu referencial.
Contrastemos então essa visão com o nosso modelo de Estado. À semelhança de muitos estados africanos, o moçambicano é catalogado como um Estado patrimonial, na acepção webberiana. Embora com uma pontinha de reserva, socorro-me da descrição postulada pelo sociólogo Elísio Macamo no seu livro Um País Cheio de Soluções. Para Macamo, Moçambique é um estado patrimonial-burocrático que, por um lado, procura gerir o auxílio ao desenvolvimento visto ser fundamentalmente de fora donde emanam as orientações centrais sobre a via do desenvolvimento do país. Introduzo aqui uma qualificação: ocorreram vários desenvolvimentos desde que Macamo publicou o seu livro, e na governação guebuziana parece haver sinais duma substancial erosão da visão escatológica da comunidade internacional. Notórias são as tensões sobre como é que o país deve gerir o auxílio. Sendo que, ocorre-me questionar se o sociólogo ainda defende a sua caracterização. Por outro lado, o estado patrimonial-burocrático preocupa-se principalmente em alcançar o desiderato de desenvolver o país e assim prover para o povo um futuro feliz. Ainda se recordam do “Futuro Melhor” ou mais recentemente “A Frelimo é que faz”? Apesar da participação activa dos moçambicanos no processo de desenvolvimento do país quem faz é a Frelimo e não o povo.
Pois bem, parece-me que a visão patrimonial dispensa da autonomia e responsabilidade individual no processo do desenvolvimento. Talvez era esse o grito de socorro do cientista político nigeriano Claude Ake. No seu livro Democracy and Development in Africa Ake argumenta que “a luta pelo poder [político] foi tão absorvente que tudo o resto, incluindo o desenvolvimento, foi marginalizado”. O argumento de Ake parece-me plausível se considerarmos que aparentemente toda a racionalidade das elites governantes africanas fundamenta-se na conquista das eleições. Não há nada de errado em ganhar eleições; afinal o jogo político democrático tem como um dos objectos a conquista do poder via eleições. Mas a questão chave é o que se faz com esse poder depois de ganho. E a lógica dominante parece ser de privatizar o poder no sentido de perpetuar a permanência no poder; parece ser um argumento circular mas uma observação atenta e cuidada pode muito bem acabar validando-o. Subjacente ao argumento de detenção e permanência no poder reside uma questão que me parece central: quem detém o poder tem acesso ilimitado aos recursos. Cá entre nós, falantes do português, sabemos o que faz a pessoa que tem a faca e o queijo na mão.
Essa fixação com o poder como um fim e não um meio pode resultar numa cegueira que obsta que se olhe para além dos cinco, seis ou sete anos do ciclo eleitoral, isto é, que se conceba uma visão desenvolvimentista. Não é por acaso que críticos apontam que as actuais políticas públicas ainda não ganharam uma prática significativa no plano de implementação - é só olharmos para os documentos centrais que orientam as políticas de desenvolvimento do país ou olharmos especificamente para as políticas agrícolas.
Essa fixação com o poder como um fim e não um meio torna-se numa das principais questões na política. A outra preocupação é a acumulação e protecção da riqueza pelas nossas lideranças. Vemos a corrida desenfreada para a acumulação da riqueza esparamada quase que diariamente nos nossos jornais. Praticamente não existe nenhuma área de negócios onde as nossas elites políticas não metam a mão. Se isso fosse na obediência estrita da legalidade, nem haveria tantos alaridos. Os processos de adjudicação de contratos são envoltos numa densa neblina que quando dissipa não deixa muito a desejar. Penso que ainda se recordam, por exemplo, da adjudicação do contracto para a produção de documentos pessoais nacionais à SEMLEX (dizia alguém maldosamente que a sigla significava SEM LEI); à Kudumba, entre outras. São todos exemplos desse processo de acumulação de riqueza pela classe política dominante. Portanto, o processo de exercício e controlo do poder parece virado para a resolução de problemas sócio-económicos duma elite política.
Apesar do discurso de crescimento económico, empreendedorismo e desenvolvimento, o Estado não parece muito atento à questão da criação dum ambiente propício para que o indivíduo dê largas à sua imaginação para o desenvolvimento da iniciativa empresária individual. As políticas existem como também existem barreiras em forma de comissões, altos impostos, altas taxas bancárias, para além de que há negócios onde não é possível entrar e singrar por aparentemente serem do domínio das elites, entre outros. Claude Ake chamaria isso de desempoderamento económico através do multipartidarismo, ou seja, as condições não são justas para todos os cidadãos. Quando mesmo é que a vida foi justa?
Chegados aqui retorno à questão da autonomia e responsabilidade individual. Sim, é verdade que o Presidente Guebuza fala amiúde da autonomia individual. Recentemente, na VIII Conferência Nacional de Quadros do Partido Frelimo disse que “devíamos, em particular, garantir que o investidor moçambicano, de pequena e média empresa, seja mais acarinhado...”Mas me parece que o discurso não se adequa à pratica. Recordo-me que há anos a comunicação social noticiou sobre um jovem que fez um carro eléctrico feito de arame. Nesta altura do campeonato em que empreendedores noutros países estão a desenvolver modelos de carros eléctricos a notícia de que um compatriota tinha feito o seu próprio carro eléctrico deveria ter sido festejada com júbilo. Mas infelizmente a nossa polícia acercou-se do local e mandou desmontar o carro. Resultado: mais uma iniciativa privada gorada.
Portanto, são entraves atrás de entraves no caminho da realização pessoal da maioria dos nossos concidadãos, o que não me parece conducente ao desenvolvimento do país. O que me leva a questionar se o nosso ambiente é bom para momentos maças.

Fonte: Savana - 04.11.2011

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