sábado, outubro 14, 2006

Distanciamento

Por Fernando Lima(*)

Os organizadores do simpósio académico a propósito de Samora Machel, entre outros objectivos, queriam não celebrar o finado, por outras palavras, não reverenciar um mártir, queriam juventude nos eventos, queriam contribuições críticas, investigação e debate.

O encontro posto de pé por Graça Machel e seus colaboradores teve de tudo um pouco, mas mostrou igualmente que 20 anos é ainda um tempo pequeno para se fazer memória e estabelecer distâncias que afastem as emoções de algo que afinal foi ontem.

É um lugar comum afirmar que 20 anos são um tempo curto para fazer história. No chão moçambicano pós independência, há outras heranças que tornam difícil o lidar com a memória dos mortos, sobretudo quando os mortos não podem ser listados na irrelevância.Não passou muito tempo que alguns compêndios toscos, pela modéstia e simplicidade da investigação e factualidade histórica, nos eram propostos como a verdade e a história única e absoluta, como se existisse apenas um credo e uma única igreja.

Um debate académico sobre Samora carregava à partida este fardo de herança. Severino Ngoenha, que na academia faz um pouco o que Jimmy Dludlu faz pela música fora de portas, explicou por palavras mais ponderadas e cuidadosamente escolhidas que estava de cabelos em pé com as intervenções do simpósio. Eu explico para quem não esteve lá.

O discurso político e a evocação militante, num dado momento, tinham tomado conta do evento, as intervenções mais académicas, mesmo essas, “eram um debate de camaradas de armas”. Mas não foi Ngoenha e Elísio Macamo a quebrarem os lugares comuns. Jacinto Veloso, tradicionalmente parco em palavras e pouco dado a barroquismos linguísticos, disse de Nkomati o que todos sabíamos, mas não deixou de ser uma voz da “nomenklatura” a vir dizer-nos que, por alturas de 1984, estávamos com a corda no pescoço e os sul-africanos poderiam isolar Maputo do resto do país.

Parece simples, mas foi a primeira vez que foi dito assim. Sem triunfalismo nem fanfarra. E foi dito que houve problemas com o ANC, e que houve problemas na Linha da Frente e com os “aliados naturais” e que nem tudo correu bem. Nada que não se soubesse, mas a catarse era precisa. Continua a ser um exercício pedagógico imperiosamente necessário. Marcelino dos Santos, que por vezes parece assumir-se como “guardião do templo”, remexeu-se inúmeras vezes na sua cadeira, consoante o nível de “provocação” dos jovens académicos que não têm cartão do partido introduziram no debate.

No mínimo mostrou capacidade de encaixe, ele que já foi um dos faróis de Alexandria no movimento de libertação sub-sahariano. Afinal se as suas declarações não têm que ser interpretadas como desestabilizadoras ou contra-corrente, novas vozes são novos contributos, para que o pluralismo não seja um simples jogo de espelhos. Ngoenha, quase a terminar o simpósio, referenciou atitudes defensivas. Houve muitas. Houve muito cerrar de fileiras.Mas também houve vozes saudavelmente dissonantes. Com todos os mas, entretantos e no entanto, era preciso começar por algum lado.

Paradoxalmente ou não, foi o simpósio dedicado a um dos ícones do partido único e do ideal de revolução, que fixou um dos momentos de abertura e debate no Moçambique que é multipartidário e
formalmente liberal desde 1990. Graça Machel marcou pontos.

(*)Espinhos da Micaia

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